domingo, 5 de junho de 2011

Reflexões de um mendigo

Acordei cedo e notei minha garrafa vazia. A noite passada foi foda, o vento zunia desesperado em meus ouvidos, ainda bem que a pinga durou até eu dormir. É a maior delícia dormir sob o efeito da branquinha. Que vocês não venham me criticar, eu bebo não é por que gosto é a situação que me obriga. E agora deu pra ter manda chuva dando pauladas nas nossas cabeças, achando que nós somos sacos de lixos. Aí é que tem que beber mesmo.

Esperei a multidão acabar, se esvaindo pelas ruas a fora rumo aos seus trabalhos medíocres. Depois me levantei e fui na birosca do seu Jorge tomar um pingado e encher a minha garrafa.

O que me chama a atenção no meio desse povo indo trabalhar, são as mulheres vestidas em trajes mil. No calor é pior ainda. Falo pior por que comigo o buraco é mais embaixo. Eu também sou ser humano e como tal também tenho desejos sexuais. Quero trepar, comer, realizar fantasias e gozar. E pra realizá-los é só por meio da masturbação, não há outro jeito. Nessa parte ainda dá pra realizar, o difícil é os meus sonhos que alimento desde que vim morar na rua.

Sempre fui um sujeito muito confuso. Fui criado em orfanato. Ao completar 15 anos me lancei na vida a fim de conquistar as minhas coisas, com 18 já tinha a minha casa de dois cômodos. Quando completei meus 24 anos fiquei revoltado com muita coisa em minha volta. Nessa época eu lia muito sobre as revoluções, as teorias, os pensadores como: Karl Marx, Aristóteles, Descartes, Kant, Rousseau, Maquiavel, Platão e Vygotsky.

Eu não tinha com quem conversar, as pessoas que estavam em minha volta não acompanhavam o meu raciocínio, e quando encontrava alguém de alto nível intelectual, esse dizia que eu falava demais.

Então, pra ter certeza que tudo o que eu estava refletindo não era fruto do meu ser confuso, resolvi me posicionar. A primeira coisa foi me proibir o consumo de determinados produtos dos Estados Unidos, e olha que argumentações não faltavam. Depois fui me fechando até acreditar na auto-gestão e não mais pagar impostos, onde eu mesmo poderia consumir minhas próprias produções, desde meu café da manhã até a cama que acomodaria o meu sono. É claro que isso envolvia um carro também.

Mas as minhas reflexões foram tão profundas que aqui estou, dormindo na rua sem pagar aluguel, sem colaborar com o pagamento da dívida externa, sem pagar imposto, sem contribuir com merda nenhuma.

Quando tirei a conclusão me achei um grande idiota, pois para fazer minha própria roupa eu teria que comprar o pano, a linha de costura e uma máquina. Porra, o pano viria da industria, a linha e a máquina também, aí não dá. Lembro que cheguei a pensar até no pequeno tubo que viria enrolada a linha de costura. Fiz uma grande reflexão.

Não deu.Vim morar na rua.

Na época em que eu lia os pensadores, também procurava informações atuais, pra isso eu precisava da porcaria da televisão que para assisti-la era necessário consumir energia, e era nesse momento que estavam discutindo a privatização das empresas fornecedoras de energia no Brasil.

Ás vezes apelava para os jornais vendidos nas bancas, mas era a mesma coisa, o dinheiro que eu pagava ao jornaleiro era dividido entre ele, o distribuidor, os editores, a gráfica e automaticamente cada um pagava suas contas com esse dinheiro.

Queria arranjar um jeito de boicotar tudo, a empresa de telefonia, os artistas fabricados pela mídia, o tênis da apresentadora de televisão, a bicicleta de dezoito marchas, o carro do ano, a comida enlatada e várias coisas. Evitando consumir tudo isso, naturalmente eu não contribuiria com o salário daqueles soldadinhos de chumbo, que servem a uma minoria de pessoas chamada elite.

Estava revoltado ao extremo, e pra não mandar todos tomarem no cu, resolvi morar na rua, pelo menos aqui não pago imposto nenhum, e olha que continuo atualizado. Tem uma banca de jornal ali na Ipiranga onde o jornaleiro que me considera muito, devido as minhas dissertações, deixa-me ler todas as notícias dos jornais diários.

Não vou dizer que aqui é o paraíso, mas só pelo fato de eu não estar contribuindo com nada, já me realizo internamente. Agora pouco estava dando altas gargalhadas com um companheiro de rua; felicidade em não fazer um filho que já iria nascer devendo.

De vez em quando aparece algum universitário querendo fazer uma pesquisa sobre mendigos e acaba ficando pasmo em encontrar um cara dormindo na rua. Digo que nem todo mendigo é um ser humano perdido, louco ou pinguço. Têm muitos como eu por aqui, muitos que quiseram evitar o padrão de vivência do mundo. Que optaram em não constituir uma família e ter que comprar presentes no natal, páscoa, dia das mães, dos pais, aniversário e outras datas capitalistas. Só assim  para defender os ideais.

Dou risada das pessoas que passam por nós e dizem ter dó, que isso não é vida. Não é vida a de vocês que acordam e vão trabalhar, chegam em casa tarde da noite, tomam banho, jantam e adormecem assistindo TV. E quando folgam vão correr atrás das coisas e resolver os problemas; oras, a folga não foi feita para descansar?

Têm uns que folgam no fim de semana e vão gastar o que sobrou do salário. Pronto, a grana acabou e ainda ficou faltando. Isso é vida?

Os jovens estão indo no mesmo caminho; trabalham e estudam e trabalham. Correm desde cedo almejando um futuro de sucesso, para adquirir bens e imóveis. E depois?


Vão fazer o quê?
Onde entra o ócio em tudo isso?
E se morrer antes de tudo?
Sim, porque a única certeza que temos é que a morte nos espera.
Bom, deixa para lá, dizem que sou louco, todos dizem. Mas o que é ser louco hoje em dia?
Alguém pode me responder?


Já é noite. Junto meus panos, pego minha garrafa e me recolho.

Sacolinha

FONTE: SACOLINHA. 85 letras e um disparo. São Paulo: GLOBAL, 2007.